A alma e a moda – final

1 de junho de 2010

Uma abordagem bastante comum da moda é considerá-la em seu aspecto superficial. O importante não é o que você veste, mas o que você faz ou o que você pensa. Não sei se todos perceberam, mas não foi isso que eu quis dizer em meu texto anterior, apesar desta visão não estar errada. Que o vestuário seja menos importante que um gesto de caridade ou uma palavra amiga na hora certa, todos conseguem perceber. A minha intenção foi analisar a moda como um tipo de influência exercida sobre os homens, mas que não é notada e é até introjetada como um gosto próprio ou uma peculiaridade que diferencia a pessoa das outras em certos aspectos. Não é o aspecto superficial do vestuário que torna a moda secundária, mas o fato de que a margem de participação individual é mínima. E tudo que não é vivenciado de forma participativa e consciente pelo ser humano não se integra realmente ao seu “eu”, geralmente fica orbitando em sua periferia, como detritos que flutuam ao redor de uma estação espacial. No entanto, muitas vezes, a auto-imagem que a pessoa faz do seu “eu” supervaloriza estes aspectos por serem aqueles sobre os quais ela parece ter algum controle, quando são justamente eles que a moldam impositivamente.

Resumindo, como aspectos muito mais profundos do ser são muito difíceis de compreender, exigindo uma introspecção com a qual a imensa maioria não tem a pretensão de gastar o seu tempo, aqueles mais simples de lidar parecem lhe oferecer a garantia de que, pelo menos com relação àquele aspecto da existência, é realmente a pessoa quem está no controle. Daí o fato de muitos valorizarem a moda e hipertrofiarem a importância dela em suas vidas. O problema, portanto, não é apenas que este aspecto seja superficial e irrelevante por si mesmo, mas que o tal controle é falso, não existe de maneira alguma. E quanto mais sincera a percepção de que este controle existe e é real, mais falso se torna o seu “eu” e, consequentemente, menos a pessoa se conhece interiormente.

Espero que tenha ficado claro que o importante aqui é entender a relação da moda com o ser humano, ou seja, o segredo é compreender que seu gosto pessoal representa muito pouco e que quase tudo está sendo imposto de fora. Esta é a única percepção correta desta realidade chamada “moda”. E desde que seja assim pecebida, não vai fazer a menor diferença para o seu “eu” se você está na moda ou fora de moda. Se o indivíduo está sempre na moda e gasta grande parte de seu tempo tentando se adaptar aos últimos modelitos, mas tem consciência de que nada daquilo é pessoal e que está sendo moldado de fora, não há problema algum. Ou seja, ele sabe que aquilo é apenas uma fraqueza entre muitas e, portanto, deve estar diposto a gastar cada vez menos tempo com isso.

Sua alma está na moda?

28 de maio de 2010

Talvez muitos não tenham percebido a importância da percepção da influência da moda em nossas vidas, por isso resolvi enfatizar o que parece ter ficado apenas implícito no texto anterior.

Nossa personalidade se forma a partir de um conglomerado de influências externas, sobretudo culturais, cuja seleção consciente ou inconsciente, nós mesmos fazemos. Ou seja, nós incorporamos certas influências e nos afastamos de outras por uma decisão pessoal, seja ela, mais uma vez, consciente ou inconsciente. A diferença é que, se a decisão é consciente, o sujeito tem controle sobre o processo e pode decidir quem realmente ele quer ser. Se é inconsciente, então ele jamais conseguirá entender quem ele está se tornando e nunca poderá mudar a situação para se tornar alguém que ele realmente gostaria de ser. E muitos são extremamente infelizes por esta razão, sem jamais apreender o motivo.

Dito isto, é fácil compreender que um dos pilares para a construção de uma personalidade autodeterminada e autodeterminante é entender o grau de influência que sofremos de elementos externos, como é o caso da moda. Se o sujeito acha que o critério de beleza que o faz julgar uma peça de roupa vem do fundo do seu coração e não de uma criação cultural cuja inconstância é a regra, ele está perdido no mundo. Porque, sendo incapaz de entender algo tão simples, como será capaz de avaliar o grau de influência de elementos muito mais sutis e cuja percepção exige um nível de atenção muito mais intenso?

Ou seja, sem perceber o que a moda faz com a sua epiderme, você jamais entenderá o que estão fazendo com o seu coração.

A moda está na moda

27 de maio de 2010

Não sou contra a moda. Sou contra o fato de que seja moda estar na moda. Eu não estou nem na moda nem fora de moda. Dá mais trabalho ficar fora de moda do que estar na moda. Tudo que está à venda está mais ou menos na moda. Uns mais, outros menos. De forma que ficar totalmente fora de moda é quase impossível. Sei que é possível comprar produtos da moda e mesmo assim ficar fora de moda, é só combinar tudo errado. Mas, mesmo isso, é mais trabalhoso do que combinar tudo certo, ou combinar mais ou menos certo. Por isso, não me sinto completamente na moda, porque não faço quase nenhum esforço para tanto, mas também não sou tão esquisitão quanto poderia ser, porque o trabalho seria ainda maior. Houve um tempo em que eu já estive bastante fora de moda, quando cheguei a vestir camisa de linho com tênis. A roupa era toda branca, inclusive o cinto. Bons tempos. A moda não existia para mim. Mas, ainda assim, aquilo não era tão esquisito assim, não chamava tanta atenção.

Há quem se vista totalmente fora de moda apenas para chocar. Estes às vezes ficam tão atentos à moda quanto os que estão fora de moda. Porque a moda muda tão rapidamente que, se o sujeito não ficar atento, aquilo que ele vestia para chocar, um mês depois pode torná-lo um perfeito mauricinho.

Não vejo nenhum problema em estar na moda. Também não vejo mal algum que se perca tempo com a moda, desde que aquele que o faça reconheça que aquilo é apenas um detalhe insignificante de sua vida, ao qual se está atribuindo um valor acima do merecido. Eu, por exemplo, perco tempo com muitos coisas que sei que não têm importância quase nenhuma e com outras que até me diminuem enquanto ser humano, mas das quais não consigo me livrar. O problema é a pessoa fazer isso e querer se convencer de que é algo de grande mérito. Aí já houve uma total inversão de valores. O sujeito é Marta e está achando que é Maria. É um pouco demais, não?

Um outro aspecto importante é o seguinte. Geralmente, quem faz questão de estar na moda alega que não está se vestindo para ninguém, mas para si próprio. Costuma alegar também que não é totalmente influenciado pela moda, que tem seu gosto próprio e que, portanto, não é totalmente manipulado pelo gosto alheio. É tudo mentira. E a falta de consciência de que está mentindo só torna a coisa mais farsesca ainda. A falsidade se torna realidade. É fácil de provar: digamos que o sujeito entre numa loja e ache um determinado produto lindo. Agora considere que ele o exiba para 50 pessoas e que todas o achem ridículo. É óbvio que ele não o usará mais nunca. Cadê o gosto próprio, cadê a autodeterminação? E pior: dizer que se veste para si próprio é algo doentio. É mais natural e mais saudável que a gente se vista para agradar a quem se dá importância: ao pai, à mãe, à esposa, ao marido, ao filho, aos amigos mais próximos. Não falo de conforto. Que se prefira um produto porque é mais confortável, tudo bem, é claro que apenas o subjetivo entrará em questão, mas a beleza, a estética têm de estar vinculadas ao relacionamento com o próximo, não podem ser independentes disto, pelo menos no que diz respeito ao vestuário.

O controle que a moda exerce sobre as pessoas precisa ser percebido. E quase nunca o é. Deixar se manipular sem perceber é se rebaixar enquanto ser humano, é se deixar ficar numa situação infra-humana. Por isso, apesar de não parecer, este é um assunto de uma certa importância. Porque a moda não existiu sempre. É um fato da modernidade. E só se tornou possível depois que instrumentos de manipulação da vida alheia se tornaram disponíveis. No passado, as pessoas se vestiam para mostrar o que as caracterizavam, porque o vestuário dizia algo sobre elas próprias, falava de sua família, tinha uma certa nota individuante. Hoje as pessoas sonham que a roupa possa ser ainda isso, não sabendo que o máximo que ela pode mostrar é um aspecto de sua epiderme emocional e nada mais. Não há nada no vestuário moderno que possa simbolizar o mínimo de algo mais profundo do ser humano.

Quanto à manipulação, é algo vexaminoso. Eu fico impressionado com a certeza com que as pessoas atribuem beleza a certas peças de roupa que há 6 meses elas mesmas julgariam horrorosas. E o pior é ver que este fato lhes passa despercebido. Hoje não se usa mais sapato de bico fino. Quanto tempo vocês querem para que eles entrem na moda novamente e todos passem a usá-lo, deixando de alegar que são ridículos como são considerados hoje? O sujeito é simplesmente incapaz de olhar para o sapato em si, abstraindo toda a influência ao seu redor, e ver que o sapato de bico fino, em si mesmo, não é mais feio nem mais bonito que os outros. Esteticamente, é algo irrelevante. Tanto sim, que se muda de preferência a toda hora.

O Mito do Progresso

25 de maio de 2010

Um dos mitos criados pela modernidade, de enorme influência sobre nossa vida cotidiana, é o mito do progresso. Esta é a primeira era da história em que o homem se acha intrinsecamente melhor que os outros tão somente por estar vivendo em determinado período histórico. Em nenhuma outra época, os homens se acharam melhores que os do passado nem tampouco pensaram que tudo estivesse progressivamente melhorando. Não cabe aqui analisar como esse mito surgiu nem como se consolidou, mas o fato é que hoje em dia é o contínuo avanço tecnológico que mais ajuda a perpetuar essa impressão, como se a análise de um único aspecto da vida humana pudesse servir de parâmetro para tudo o mais.

Para não entrar em controvérsias, vou dar um exemplo típico de uma área em que houve regressão e não progresso: a música. Será que há alguém capaz de discordar que já não temos mais nenhum Bach, Vivaldi, Mozart, Beethoven ou mesmo um Wagner? Bem, e ainda assim, é comum se ouvir dizer que estes compositores estão ultrapassados. E assim se diz tão somente porque viveram antes de nós. Somente por isto e por nenhum outro motivo. E quem houve tal argumento acha normal. Em outra época todos tomariam por louco quem pronunciasse tal sentença. E tal impressão de normalidade advém unicamente do mito do progresso, impregnado nas consciências de cada um de nós, de tal forma que se torna extremamente difícil convencer um outro de algo banal e óbvio: Bach era melhor que qualquer compositor atual. E há quem se convença, mas afirme que, mesmo sendo melhor, não convém ouvi-lo mais, porque seu tempo já passou. Ora, vejam que transformação o mito do progresso causou na alma humana: nem mesmo o valor serve mais como critério. Não importa se é melhor, mas se é “adequado” ao mundo atual. E o que é adequado ao mundo atual? O que é atual. Que maravilha, hein? Ou seja, estamos trancafiados em nosso tempo, não podemos nos elevar acima dele. Como chegamos ao ponto de achar que o confinamento temporal é melhor que a abertura? Como incrustamos em nossos corações a idéia de que o tempo é senhor de tudo? E como não percebemos que isto não pode jamais ser um progresso?

Curar-se deste mal parece fácil, mas não é. Mesmo os que chegam a compreender a estupidez do mito não conseguem agir sem se deixar influenciar por ele. Não adianta nada você me dar razão, mas continuar agindo como se eu não a tivesse. Voltando ao exemplo acima, acho incrível como há quem concorde com tudo que eu digo e depois ache esquisito o fato de eu ouvir tais músicas. Tenho amigos que, em conversas particulares, apóiam todos os meus argumentos, mas continuam ouvindo as mesmas ridículas musiquinhas modernas e ainda acham graça quando seus filhinhos as dançam. Ou seja, o mito só foi rechaçado em teoria, na prática é ele quem continua orientando suas vidas.

Fiz uma experiência com meus filhos de 3 e 4 anos, que não é difícil de repetir. Faça isto se for possível, caro leitor. Apresentei-lhes músicas tipicamente infantis dos dias de hoje e mesclei-as com o Aleluia de Handel. Eles só pediam para repetir esta última, chegando quase à exaustão. Agora já ouvem também Beethoven, Brahms, Bach, Vivaldi e outros. Ou seja, se for oferecido ao ser humano a possibilidade de escolher entre o melhor e o pior desde pequenininho, ele geralmente escolherá o melhor, ainda que seja apresentando com menor freqüência. O problema é que o que há de melhor lhe é inteiramente negado. Já adulto, com o ouvido viciado, não é mais fácil fazê-lo se acostumar com algo tão diferente, e fica até difícil captar a complexidade de uma música quando já se está acostumado com a banalidade de outras.

Acredite, caro leitor, é possível escapar do mito do progresso, ainda que ele nos deixe alguns arranhões. Mas é preciso querer.

Influência Cultural

22 de maio de 2010

O homem é produto do meio, eis uma meia verdade. Se o homem é capaz de fazer escolhas, é óbvio que o meio não pode determiná-lo por completo. Mas pode restringir bastante seu campo de atuação. A cultura é este meio. Mas qual cultura?

Vamos aos poucos. Primeiro é preciso entender como de dá o processo de conhecimento do ser humano. Por incrível que pareça, o que há de mais importante nesse processo é a imaginação. Sem ela, todo o resto perde o valor. Não há nada que o homem possa conhecer sem antes imaginar. E é justamente através da limitação da capacidade imaginativa que o meio cultural molda a personalidade humana. Não precisa ser muito genial para perceber que a cultura moderna, com sua glorificação da “lógica racional”, diminuiu incrivelmente a capacidade imaginativa do homem contemporâneo.

Vou dar um exemplo para esclarecer melhor: digamos que um certo sujeito nasceu e viveu todos os seus dias numa determinada cidade, onde nunca houve roubos e assaltos. Digamos que ele nunca teve acesso aos meios de comunicação de massa e nunca soube que em outros lugares estes problemas são endêmicos. Se este sujeito nunca ler num romance ou numa poesia que estas são possibilidades da existência humana, ficará perplexo e simplesmente não entenderá o que está acontecendo se lhe assaltarem um dia. Ou seja, ele não é capaz de conceber aquela situação. E, mesmo depois de passar por ela, terá dificuldade de compreendê-la. E, provavelmente, se alguém lhe der uma explicação que seja mais compatível com o seu legado cultural, ele imediatamente a aplicará. Por exemplo, se alguém disser que o ladrão levou seu dinheiro porque pensou que era dele, é bem provável que o sujeito acredite, porque a outra hipótese não cabe em seu campo imaginatvo, portanto está fora de sua capacidade perceptiva.

Mas a pergunta inicial era: qual cultura molda a vida de cada um de nós? E a resposta é: depende de quem você está falando. Por exemplo, o sujeito que se limita a ver TV tem a maior parte do seu imaginário moldado pelo que aconteceu nos últimos 6 meses. O que, além da TV, lê jornais e revistas semanais tem seu campo restrito aos últimos 2 anos. Se de vez em quando a pessoa lê algum romance da moda, isso amplia seus horizontes para 5 anos. Quem lê os romances clássicos consegue abarcar os últimos 300 anos. E quem conseguiu aproveitar todo o legado literário ocidental, atinge 2400 anos, mas com sérias restrições. Explicarei a razão de tais restrições a seguir.

De um modo geral, as 4 grandes influências na formação da cultura ocidental são: Cristianismo, Judaísmo, Platão e Aristóteles. Quem quiser acrescentar o legado romano não fará mal, mas ele está de certa forma abarcado pelos anteriores. Nosso imaginário está aí dado. E é praticamente tudo que o ser humano realmente é capaz de conceber. Digo “praticamente” porque há elementos da cultura oriental que realmente fogem deste campo, mas não é tanto assim quanto se imagina. Não vou discutir isso agora.

Então imagine círculos concêntricos, sendo o mais externo formado pelos 4 pilares referidos acima. Os círculos internos correspondem a níveis culturais progressivamente mais restritivos, até chegarmos ao nível da cultura puramente televisiva. Não saberia delimitar exatamente todos os círculos internos – talvez ninguém o saiba – , mas é certo que um deles é de extrema importância: o círculo da cultura moderna determinada pelo iluminismo, principalmente pela filosofia e ciência iluminista.

A influência deste círculo cultural é hoje tão avassalador que não seria exagero afirmar que mais de 90% do imaginário do homem moderno é dominado por ele. Portanto, mesmo aquele sujeito descrito acima, que conseguiu absorver todo o legado literário ocidental, pode nunca penetrar realmente em suas profundezas, pois tem grande chance de interpretar tudo que leu à luz da cultura iluminista. Ou seja, o sujeito lê a Bíblia, as histórias de cavalaria medievais, Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Aristófanes e ainda assim não consegue adentrar no campo imaginativo deles, porque a cultura iluminista funciona como uma mordaça cerebral, que impede a imaginação do sujeito de sair daquele tipo de concepção simplificada da realidade.

Isso aí, ô ô, é um pouquinho de Brasil

1 de junho de 2009

Num programa de esporte, discutia-se sobre as reformas nos estádios para a copa de 2014. Alguém calculou que talvez ficasse mais barato demolir o Maracanã e reconstruí-lo novamente. Mas, no final do comentário, ressaltou que era preciso considerar também o aspecto sentimental. Qual o quê!, intrometeu-se um terceiro, não se trata apenas de sentimento, o Maracanã é a memória viva do país, um reflexo daquilo que é o Brasil.

O Brasil é o Maracanã. Que tal? Não é o Aleijadinho, não é Machado de Assis, nem Manuel Bandeira. Não é Joaquim Nabuco, nem José Bonifácio. Não é Mário Ferreira dos Santos, nem Gliberto Freyre. É o Maracanã. Moro num estádio de futebol. E o pior que é verdade.

Religião e Reabsorção

25 de maio de 2009

Em matéria de religião, cronologia é fundamental. Diferentemente do que tentaram fazer os perenialistas, a única forma de um ocidental compreender as demais religiões é reabsorvendo-as no cristianismo, vendo todas as que vieram antes – e não apenas o judaísmo – como uma preparação para a Igreja definitiva, a do fim dos tempos. Como o islamismo é a única que veio depois, não pode ser reabsorvido, sobrando como única alternativa a de ser considerado como uma degeneração da compreensão de Deus. Estou firmemente convicto de que esta é realidade e não apenas a visão simplista e unilateral de um cristão.

Uma historinha filosófica

14 de maio de 2009

Sócrates estava lá, sentado no cantinho dele, quando, de repente, uma maçã atinge sua cabeça. Não, não é nada disso, essa é uma outra história. Como dizia, Sócrates estava lá sentado, pensando na vida, quando lhe veio a idéia : não seria possível a existência de um conhecimento que tivesse o grau de certeza que nos proporciona a matemática mas que se refira a fatos concretos ? Sim, talvez.

Então saiu feito um maluco a perguntar às pessoas o que seria a justiça, a coragem, a bondade. E lhe davam exemplos de pessoas justas, corajosas, bondosas. Aí ele citava homens que haviam feito algo bem diferente mas que não deixava de qualificá-los de justos, corajosos e bondosos. O que significava que deveria haver algo de comum em ações tão diferentes que nos fazia considerá-los assim. Os amigos e discípulos propunham isso e aquilo e ele ia eliminando as possibilidades que não se encaixavam. Foi isso, em resumo, que fez o incomensurável Sócrates. E o mataram por tal ousadia.

Platão também era um desocupado. Sem ter o que fazer, resolveu seguir Sócrates. E aprofundou a dialética criada pelo professor. Aristóteles foi ainda mais longe, fundando várias ciências. O fato é que todos eles queriam apenas saber mais para poderem ser mais, e ser mais para poderem conhecer mais. E nunca passou disso.

Apesar de todos os desvios, a coisa continuou assim até a Idade Média, quando ser mais tornou-se ser santo. Até então, nenhum filósofo que não se desviou desse caminho se disse sábio. Mas a partir daí, todos se proclamaram sabidos. É isso mesmo : na impossibilidade de se tornarem sábios, os humildes homens modernos se conformaram em ser sabidos.

Muito ocupadinhos, não tiveram tempo de estudar as bobagens que haviam escrito os três ultrapassados velhinhos gregos. Além do mais, o conhecimento que eles estavam adquirindo já era prova suficiente de que tudo que se produziu antes nada significava.

Cada um quis começar do início. Os moderninhos são todos originais. Descartes concluiu que só existiam 2 coisas : o Espírito e a extensão, e garantiu que nada os unia. Então como o Espírito poderia conhecer a extensão ? Foi necessário pedir ajuda a Deus. Depois veio Kant. Este jurou sobre o milho que a inteligência e a moral estavam completamente separadas. Conclusão : um mutilou o homem, o outro mutilou a mente. E jamais pediram perdão a ninguém pelo que fizeram. Ao contrário, houve quem rogasse a eles para perdoarem seus pecados. Sentiam-se mal diante de tamanha revelação. Ora, mas quem não se sente mal quando se deixa mutilar sem sentir dor ?

E Platão comentou com Sócrates, lá de cima : ei, é impressão minha ou esses caras estão separando tudo que a gente conseguiu unir ? E Aristóteles se intrometeu : vocês já ouviram falar em desconstrucionismo ? E um sorriso maroto brotou dos lábios de cada um.

Ato Falho

14 de abril de 2009

Como todo mau cristão e bom pecador, rezava distraidamente o Pai Nosso quando Deus me puxou as orelhas por meio de um ato falho freudiano: “… seja feita a vossa bondade, assim na terra como nos céus.” Pensei em explicar o que isto significou para mim, mas acredito ser desnecessário.

Gran Torino

13 de abril de 2009

Gran Torino é um filme acima da média, assim como seu diretor. Mas nada além disso. Nem poderia ser diferente. Talvez, com raríssimas exceções, esse seja o maior elogio concebível que se possa fazer a um diretor ou a uma obra de arte dessa espécie. O cinema não é nem apenas um mero instrumento de propaganda, como quer crer meu amigo Flamarion – embora muitas vezes seja exatamente isso -, nem algo tão sublime que possa se comparar à literatura, como já tentou demonstrar meu amigo César Miranda.

Um filme é sempre uma obra coletiva. O diretor vai sempre depender de uma série de elementos externos para compô-la, a começar pelo roteiro, que muito poucas vezes é responsabilidade sua, ainda que ele o escolha. O controle que o diretor consegue ter sobre o conjunto é sempre parcial, de forma que o resultado final jamais poderia refletir totalmente seu real objetivo, nem muito menos significar fielmente seu estado de alma.

Se compararmos grandes diretores com grandes mestres literários fica patente a superficialidade dos primeiros, facilmente perceptível na biografia e nas entrevistas de cada um deles.

Muito já se escreveu sobre Gran Torino, mas nada se compara, em estranheza, à análise de Martim Vasques. É tão artificial, hiperbólica e rebuscada que a impressão de qualquer um à primeira leitura é de que ou nada daquilo faz sentido ou Clint Eastwood é um homem do outro mundo. Mas ele não é. Trata-se apenas de um cristão libertário, como o próprio crítico admite, que costuma dar muito mais vazão a seu libertarianismo que a seu cristianismo. É só lembrar de Mystic River e Menina de Ouro. E sempre que essa preponderância se dá de forma marcante, Martim tenta reconciliar esse espírito com o de uma metafísica mais profunda, enxergando na obra muito mais do que qualquer um pode ver. Entretanto, dessa vez, ele faz o contrário: enquanto todos vêem um final cristão, ele vê o desespero. Concluirei sobre este fato mais adiante.

Mesmo nesta última película, apesar do significado notoriamente cristão do seu desenlace, os elementos libertários são dominantes. A trama gira em torno de um homem que, enquanto tenta se compreender – ao mesmo tempo em que resiste a isso -, mantém suas atitudes externas inalteradas: é o seu lado libertário. Aquilo lá é inegociável. E, se não fosse o final, seria essa a mensagem que ficaria, a de que apenas a convivência pode mudar um preconceito, o Estado nada pode nem deve fazer quanto a isto. E já seria um grande filme.

Por que ele não confessa seu principal pecado, o de ter matado um inocente na guerra? Não sei a resposta, mas a impressão que dá é de que ele não leva a confissão suficientemente a sério, pois faz questão de enfatizar que tem as mãos sujas de sangue e que, por isso mesmo, é quem deve resolver o conflito. A confissão pode ser considerada, neste contexto, mera formalidade, assim como a barba e o terno. E mais: se é sujo de sangue que ele se entrega à morte para salvar seus amigos, após ter feito uma confissão, não deixa de haver aí um toque de gnosticismo. A salvação se dá por ele mesmo, e não em Cristo, porque o perdão do Senhor antes da morte não foi relevante. Mas devaneio. E admito: sem um forte autocontrole, não é difícil seguir as pegadas de Martim Vasques, por isso o compreendo.

E concluo o que deixei em aberto lá em cima. A interpretação do nosso amigo é rebuscada porque foi a única que conseguiu dar um significado coeso a várias cenas que, interpretadas do ponto de vista cristão, não fazem o menor sentido. O genial Clint Eastwood não poderia deixar essa imagem fragmentária em sua obra. Mas se partirmos do ponto de vista de que o velhinho é apenas mais um dos bons diretores de cinema em meio a tantos outros, é muito mais simples e verossímil supor que ela realmente não é compacta e que deixa transparecer tanto seu lado cristão quanto libertário, sem alcançar uma unidade, provavelmente porque essa unidade também não se dá em sua própria alma.

Aliás, quanto a este aspecto, um outro diretor moderno costuma ser bem mais coerente ao defender certos valores tradicionais. Trata-se de Christopher Nolan, responsável, entre outras preciosidades, por Insônia e O Cavaleiro das Trevas, apesar do talento ainda inferior ao do Clint Eastwood.

Para não deixar uma impressão errada, é bom enfatizar que acompanho e admiro as publicações de Martim Vasques, apesar de quase sempre discordar de suas análises cinematográficas e preferir a visão mais sólida e pé-no-chão de Francisco Escorsim, cujas interpretações metafísicas são facilmente detectáveis na própria obra analisada, sem necessidade de recorrer a saídas mirabolantes.